Família em Movimento

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domingo, 29 de janeiro de 2017

Silêncio

No dia de ontem fomos ver Silêncio, o filme de Martin Scorsese.

Fomos curiosos, na justa medida em que o filme nos havia sido recomendado ver. Sabíamos ao que íamos pois haviam-nos dito que o filme, para quem tem as ideias muito arrumadas, não belisca; mas, para quem não as tem, a nível religioso, melhor seria se houvesse da parte destas uma conversa à posteriori com sacerdote ou amigo "arrumado", para mitigar os estragos.

Antes de ver o filme lemos igualmente duas opiniões. A primeira, de José Miguel Pinto dos Santos. A segunda, de Laurinda Alves.

Gostámos do filme pese embora o achemos curto, não na duração, mas no conteúdo. Faltou um plus e esse plus seria o próprio cristianismo que implica mais, muito mais, porque vai mais além do que se viu no filme.


Sem embargo, após meditação e indo directos ao filme, o mesmo apresenta vários entendimentos, que a seguir apresentamos.


Questão Prévia - O Filme

Dois padres jesuítas portugueses, no século 17, Sebastião Rodrigues e Francisco Garupe, viajam até o Japão, numa época onde o catolicismo foi proscrito, à procura do padre Ferreira, o mentor de ambos, uma vez que havia a notícia de ter abjurado. Os jesuítas enfrentam assim a violência e perseguição brutais de um governo que deseja expurgar todas as influências externas, incluindo o cristianismo.


I A apostasia dos padres Ferreira e Sebastião Rodrigues

Terão perdido ou negado, verdadeiramente, a fé? O fim do filme elucida quanto à real apostasia dos dois sacerdotes. Ferreira, em diálogo com Rodrigues, fala em “Nosso Senhor”. Rodrigues chama-o à atenção e fica pensativo. O próprio Rodrigues, após apostatar, a pedido de Kichijiro, ainda que a cena não continue até ao fim, parece ouvi-lo de confissão. A cena final do filme mostra Rodrigues morto, em cerimónia budista, com o crucifixo na mão. O crucifixo só pode ter sido colocado com a “imposta mulher” do sacerdote, às escondidas, na despedida ao falecido “marido”. 

Outro sinal é a necessidade que o governo teve em obrigar Rodrigues a reiterar os exercícios – cuidadosamente apelidados de formalismos sem importância alguma… - de abjuração da fé cristã, ao pisar uma imagem de Cristo. Não só ele como a sua “imposta mulher”, o que leva a crer que o governo tinha medo dele e dela ou da sua conversão pela co-habitação com o “padre”. 

Simultaneamente, é dito que nenhum dos apóstatas não mais falou, em público, da sua fé.

Vamos por partes. Os dois sacerdotes – Garupe e Rodrigues – são muito diferentes entre si. Enquanto Garupe é pragmático e impaciente, Rodrigues é sentimental e paciente, muito paciente, suportando tudo até ao limite. Garupe não abjurou e morreu a tentar salvar os camponeses cristãos mortos pelo governo. Foi um sacerdote pragmático, confiável, mártir.

Rodrigues é levado ao limite do sofrimento e até a uma loucura que se manifesta. É nesse momento de loucura que, por chantagem, cede e renega à fé. A chantagem é posta em termos que, ou ele cede, ou outros morrerm na fossa (remeto novamente para a leitura do texto do doutor José Miguel Pinto dos Santos). Mas tudo não é mais que uma mentira quando lhe dizem que é por ele e por sua causa ou culpa que os camponeses irão morrer na fossa. Mentira! Se os camponeses morrem na fossa é por causa e culpa do governo que deles usou e utilizou para chantagear o sacerdote e inventar um (falso) pretexto. Mas o sacerdote, caiu. E caiu por ter sido levado ao limite e por, em manifesta loucura, não possuir a necessária capacidade para bem decidir. Admitiu ser ele a causa do morte dos camponeses e, para a evitar, abjurou. 

Após a apostasia é-lhe imposta uma mulher e “herda” o filho dela com o falecido marido. Da vida conjugal pouco ou nada se sabe. A única coisa que fica da relação é a necessidade que o governo teve de os provar a ambos na permanente negação da fé cristã. Mas se ela não era cristã, temer que o seja ao ponto de ter de provar que não é só prova o receio da conversão oculta às mãos de um Rodrigues que nunca se divorciou da sua fé, negando-a por razões que só ele sabe. Sem prejuízo, quando os sacerdotes negaram a fé  mas afirmavam-na interiormente, significa que viveram uma vida com ausência de unicidade, isto é, negavam Cristo publicamente, por palavras e por actos, mas interiormente afirmavam-no como Senhor. Este cristianismo é em si mesmo manco, nada fértil, porque é feito fora da Igreja. Ou seja, viver a fé fora da unidade da Igreja é viver de uma fezada que não é fecunda, não produz fruto, hoje como ontem. 
Que frutos se viram enquanto sacerdotes? Muitos. Que frutos se viram depois de abjurarem ainda que vivendo uma fé pessoal e fora da igreja, uma fezada? Nenhuns. E esse ensinamento é-nos dado para meditação.       

II  Morrer para a vida também é morrer

Muito se pode dizer e escrever de Rodrigues, mas a verdade é que podemos ver dele um fraco que abjurou, um fraco que não morreu pelos seus irmãos, um fraco que preferiu viver a morrer, um fraco que não cuidou de levar a sua cruz até ao fim. E podemos ver um Rodriguez como um herói, um mártir que deu a sua vida pelos outros.
Mas como se não morreu? Por isso mesmo. Não morreu, antes viveu a mentira das mentiras da sua vida, ficcionando ser quem não foi, para salvar quatro camponeses cristãos. Isto é, abdicou da sua vida, da sua essência, da sua vocação para salvar outros. Ele, sacerdote, foi forçado a viver sem falar e viver de Quem mais amava.O que é isso senão morrer?

Mas tal afirmação pode ser negada se se considerar que o verdadeiro martírio seria morrer no verdadeiro sentido da palavra, porque a outra morte em vida estava vedada aos sacramentos e vida de comunhão com os outros.

Para confundir mais, os defensores da tese do martírio em vida sempre poderiam alegar que seria precisamente por isso que Rodrigues havia sido um mártir, a justa dimensão da sua privação.   


III  A personagem Kichijiro

Esta intrigante personagem personifica-nos e a sua relação com o padre Rodrigues personifica a relação que temos com Deus, isto é, Kichijiro é o homem que trai, denuncia, o homem sem escrúpulos mas que depois regressa sempre ao regaço de Quem dele foi sempre amigo, não traiu, não denunciou, não o julgou e sempre o perdoou. Quem mais senão Deus nos faz isso? Parece-nos que relação destes dois personagens personifica a relação do Homem com Deus.


IV  A igreja clandestina e os missionários

Findamos. Este Silêncio trouxe-nos a imagem da igreja clandestina, perseguida e com medo, por um lado e os missionários, por outro. Se por um lado percebemos claramente que estamos demasiado cómodos na vida e que, em comparação com estes irmãos ainda temos muito a provar, por outro criamos um respeito enorme por sacerdotes e religiosos que deixam tudo para serem missionários, para irem ter com os povos cristãos tantas vezes perseguidos por esse mundo fora.

Tomara termos a devoção e amor a Cristo e aos irmãos que estes cristãos – ainda perseguidos e mortos neste século XXI – têm, ao ponto de não negarem a sua fé, ainda que para isso vivam na terra um inferno.  


Conclusão

Repito, o filme é bom, mas curto. Falta o resto que não foi contado.
Foram apresentadas teses e cada uma delas com o seu contrário. Nenhum de nós atrás de um teclado do computador foi levado até ao limite pelo que, se por um lado é cómodo opinar se Rodrigues foi herói ou vilão, vencedor ou vencido, por outro não sabemos como reagiríamos numa situação limite ou quando os limites são efectivamente  ultrapassados.

Numa altura em que todos os limites haviam sido testados, Ferreira convence-o com uma mentira quando nega o fruto da oração fazendo-lhe crer que rezar não compensa porque nada acontece (estilo micro-ondas ou programa de discos pedidos), fazendo de Deus um Aladino. 

Não sabemos se se convenceu ou se se fez de convencido, conforme acima escrevemos. Não sabemos porque não morreu, como outros, ou se preferiu morrer vivendo, como outros não quiseram. Uns e outros justificaram a fé. 

Ou então entende-se que uns sim, mas outros não porque não a viveram em comunidade e não a viveram sacramentalmente. Se prevalecer a primeira tese, são mártires e respeitáveis cristãos. Mas se prevalecer a última tese, Ferreira e Rodrigues não venceram, mas sim foram vencidos. E se foram vencidos, como disse Brenno, vae victis.

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