“Não me importo de vos contar que, em algumas ocasiões, o Senhor me
concedeu muitas graças; mas habitualmente ando a contragosto. Sigo o meu plano
não porque me agrade, mas porque devo cumpri-lo, por Amor. Mas, Padre, pode-se
interpretar uma comédia com Deus? Isso não é uma hipocrisia? Fica tranquilo:
chegou para ti o instante de participar numa comédia humana com um espectador
divino. Persevera, que o Pai, e o Filho, e o Espírito Santo contemplam a tua
comédia; realiza tudo por amor a Deus, para agradar-lhe, ainda que te custe.
Que bonito é ser jogral de Deus! Que belo recitar essa comédia por Amor, com
sacrifício, sem nenhuma satisfação pessoal, para agradar ao nosso Pai-Deus, que
brinca connosco! Encara o Senhor e confia-lhe: Não tenho vontade nenhuma de me
ocupar nisto, mas vou oferecê-lo por ti. E ocupa-te de verdade nesse trabalho,
ainda que penses que é uma comédia. Bendita comédia! Eu te garanto: não se
trata de hipocrisia, porque os hipócritas precisam de público para as suas
pantomimas. Pelo contrário, os espectadores dessa nossa comédia - deixa-me que
to repita - são o Pai, o Filho e o Espírito Santo; a Virgem Santíssima e todos
os Anjos e Santos do Céu. A nossa vida interior não encerra outro espetáculo a
não ser esse: é Cristo que passa quasi in occulto, como em segredo.”
É uma citação do Ponto 152 do livro Amigos
de Deus de São Josemaria Escrivá. Assim me sinto tantas vezes. Assim nos
sentimos vezes sem conta. Mas a vida não nos é dada para sentir nem tão pouco
nos devemos condicionar por sentimentos. Antes por amor.
Amar não é sentir e sentir não é amar,
ainda que por vezes ambas se possam cruzar.
Fazemos o que fazemos porque amamos e
porque Deus quer que o façamos na nossa condição.
Não nos pede que façamos
apenas se nos sentimos com vontade de fazer ou se estamos bem-dispostos. Quer
que façamos o que temos a fazer sem demoras que equivalem a omissões
independentemente do estado de espírito.
O meu querido amigo (ainda não é Santo mas
caminha) dizia-me ontem que a sua suprema preocupação era agradar ao Espectador
Divino. Imediatamente recordei o texto que acima cito.
Efectivamente, somos actores. E Deus
ama-nos loucamente assim porque – perdoarão a analogia – as crianças
deliciam-se com o palhaço que as diverte e os adultos com os actores que executam
perfeitamente o seu papel numa sala de teatro ignorando, na maioria das vezes,
qual o estado de alma real da pessoa que encara a personagem.
A vantagem é que Deus conhece o nosso
estado de alma e isso ainda nos confere maior mérito. Sabe qual a disposição
com que fazemos as coisas. Imagino o nosso Divino Espectador a ver-nos tantas
vezes felizes e outras tristes, mas sempre presentes, sempre fiéis.
Aconteça o que acontecer, doa a quem doer,
aqui estamos. O meu amigo deixou-me a pensar e percebi as palavras do meu DE na
primeira vez que nos cruzámos. Disse-me nesse dia “faça chuva ou sol,
quero-o sempre aqui nos dias e nas horas marcadas.” E assim tem sido.
Também em família tem sido assim, meu caro
amigo. Tantas e tantas vezes não apetece mas o amor supera as ausências da
vontade. E muitas vezes fazemos o que fazemos porque sabemos ser o que tem de
ser feito. Omitir conscientemente uma acção seria enganar o nosso próximo e o Espectador Divino não aplaudiria a cena. Em família e em lado algum há lugar à mentira,
aliada do inimigo. Somos filhos – filhos!!! – da Verdade e nela queremos
permanecer.
São Josemaria
escreve que fazemos tantas e tantas vezes muitas comédias. Chama-lhes benditas.
Falta vontade. Faltam forças. Não apetece. Chove. Faz frio. Estamos com os
nossos. Estamos fora dos nossos. Fazemos Kms. Levantamos cedo e reparamos que
outros dormem. Limpamos o que está sujo. Arrumamos e voltamos a arrumar vezes sem
conta as mesmas coisas. Levantamo-nos da cama quando a criança acorda sem nada mas
acorda... ou estamos presentes quando ela está doente e o sono luta connosco sabendo nós que
no dia seguinte há jornada de trabalho; quando os filhos põem a mesa sem
vontade deixando na TV os desenhos animados aliciantes ou quando executam uma
tarefa pedida pelos pais mesmo que não lhes apeteça; a interajuda no seio da
família, convergindo para o bem de todos por amor e com amor.
Tantas coisas
seriam escritas… quando não apetece e fazemos as coisas sem vontade… só o
fazemos por amor. Ponto.
O trabalho. Esse trabalho que oferecemos
a Deus que tem de ser estudado, pensado e executado. Esse trabalho que demora
horas. Esse trabalho que se quer bem feito porque a Deus só podemos oferecer um
trabalho digno, bem acabado.
E tantas vezes, já cansados, não apetece
nem mais um minuto. Mas então, há o dever. Olhando a cruz (o crucifixo em cima
da mesa de trabalho) e tendo a certeza de que é a nossa daquele momento, que
nos deve animar.
Deus mira-nos e contempla-nos.
Observa-nos. Regista. Atrevemo-nos a dizer que vai dando notas consoante os
vários actos. Percebe que estamos em esforço muitas vezes mas que não
desistimos como fazem os incautos. E isso agrada-Lhe.
E a contragosto o fazemos, muitas vezes. Que
bom não sermos hipócritas por não estarmos permanentemente com um sorriso
rasgado na cara como se tivéssemos elásticos presos na boca mas apenas actores
de uma comédia humana em que representamos o nosso papel.
E outras vezes não. Estamos
verdadeiramente ali, presentes, efectivamente presentes e mergulhados.
Ao fim e ao cabo, olhando este texto e
meditando as palavras já escritas, pior seria acomodar e não desinstalar.
Mas estamos. Numa e noutra. Estamos. E
isso é importante. Sem actores… não há espectáculo.
Tomara que no fim da peça, haja o aplauso
do público. Seria o fim desejado.
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